Levanto-me devagar. Procuro a roupa no chão. Enquanto me visto ressonas baixinho. Saio descalça. Só calço os sapatos na escada. Apanho o elevador. Corro para o carro. Desligo o telemóvel para que não me possas ligar quando acordares. Não gosto de mensagens lamechas, nem de promessas vazias. E por favor, não me venhas cá perguntar se gostei. Porque efectivamente, não gostei especialmente do teu desempenho. Esperava mais. Os teus olhos tinham-me prometido mais. Mas as tuas mãos não descobriram os meus exactos contornos, os teus lábios não tinham a intensidade necessária, não ouviste as minhas indicações e a tua insegurança deitou tudo a perder. E não me venham com a conversa que o tamanho não interessa. Porque interessa. Interessa e muito! Interessa tanto, que não vai haver segundo encontro.
Natália
Espaço sem tempo e sem rumo. Puro exercício de escrita no prazer de contar histórias de amores perfeitos, ou talvez não ...
quarta-feira
quinta-feira
Mentiras (In)visíveis
..."O mais difícil do casal é que há sempre algum momento em que se tem de voltar para casa quando não se tem vontade. Não se pode estar a fugir constantemente. Existe um momento no qual tem de se bater à porta ou simplesmente entrar nesse lugar onde se vai construindo a golpes de martelo não se sabe se um colarzinho de ferro bonito se umas cadeias que prendem às paredes da casa conjugal. Bet ouve os barulhos íntimos do prédio, o barulho do elevador que pára no andar, o rodar das chaves na fechadura. «O que é que aconteceu, Alf? Como é que chegas tão atrasado?»E ele, escorregando sobre a evidência, no limite entre os ciúmes e a falsidade, entre a consciência pesada por ter estado a beber copos com o inimigo e a suspeita de estar a dormir com a sua inimiga, deixa-se levar e diz: «Já sabes. A reunião de trabalho, talvez haja novidades ...»."...
Joan Barril
segunda-feira
sexta-feira
Ainda há Príncipes encantados….
Se está à espera do Dia dos Namorados para arranjar um, não fique sentada. Faça como uma amiga minha que cada vez que sai do carro, vira o retrovisor para o lado do condutor, retoca o batom e diz com uma convicção demolidora o Príncipe pode estar em qualquer lado. E pode mesmo. É uma questão de fé, totalmente arbitrária e alietória, mas pode acontecer. Até porque nós, os extraordinários, somos poucos, mas andamos por aí. Isto é o que diz outro amigo meu que por acaso é mesmo extraordinário e já encontrou a pessoa certa, pelo menos por enquanto. Foi ele que um dia me explicou o que era esse maravilhoso conceito da pessoa certa. A pessoa certa não é a mais inteligente, a que nos escreve as mais belas cartas de amor, a que nos jura a paixão maior ou nos diz que nunca se sentiu assim. Nem a que se muda para nossa casa ao fim de três semanas e planeia viagens idílicas ao outro lado do mundo.A pessoa certa é aquela que quer mesmo ficar connosco. Tão simples quanto isto. Às vezes demasiado simples para as pessoas perceberem. O que transforma um homem vulgar no nosso príncipe é ele querer ser o homem da nossa vida. E há alguns que ainda querem. Os verdadeiros Príncipes Encantados não têm pressa na conquista porque como já escolheram com quem querem passar o resto da vida, têm todo o tempo do mundo; levam-nos a comer um prego no prato porque sabem que no futuro nos vão levar à Tour d’Argent; ouvem-nos com atenção e carinho porque se querem habituar à música da nossa voz e entram-nos no coração bem devagar, respeitando o silêncio das cicatrizes que só o tempo pode apagar. Podem parecer menos empenhados ou sinceros do que os antecessores, mas aquilo a que chamamos hesitação ou timidez talvez seja apenas uma forma de precaução para terem a certeza que não se vão enganar. O Príncipe Encantado não é o namorado mais romântico do mundo que nos cobre de beijos; é o homem que nos puxa o lençol para os ombros a meio da noite para não nos constiparmos ou se levanta às três da manhã para nos fazer um chá de limão quando estamos com dores de garganta. Não é o que nos compra discos românticos e nos trauteia canções de amor no voice mail, é o que nos ouve falar de tudo, mesmo das coisas menos agradáveis. Não é o que diz Amo-te, mas o que sente que talvez nos possa amar para sempre. Não é o que passa metade das férias connosco e a outra metade com os amigos; é que passa de vez em quando férias com os amigos. O Príncipe que sabe o que quer, não é o melhor namorado do mundo; é o marido mais porreiro do mundo, porque não é o que olha todos os dias para nós, mas o que olha por nós todos os dias. Que tem paciência para os meus, os teus, os nossos filhos e que ainda arranja um lugar na mesa para os filhos dos outros. Que partilha a vida e vê em cada dia uma forma de se dar aos que lhe são próximos. Que ajuda os mais velhos a fazer os trabalhos de casa e põe os mais novos a dormir com uma história de encantar. Que quando está cansado fica em silêncio, mas nunca deixa de nos envolver com um sorriso. Não precisa de um carro bestial, basta-lhe uma música bestial para ouvir no carro. Pode ou não ter moto, mas tem quase sempre um cão. Gosta de ler e sai pouco à noite porque prefere ficar em casa a namorar e a ver o Zapping. Cozinha o básico, mas faz os melhores ovos mexidos do mundo e vai à padaria num feriado. O Príncipe é um Príncipe porque governa um reino, porque sabe dar e partilhar, porque ajuda, apoia e nos faz sentir que somos mesmo muito importantes. Claro que com tantos sapos no mercado, bem vestidos, cheios de conversa e tiradas poéticas, como é que não nos enganamos? É fácil. Primeiro, é preciso aceitar que às vezes nos enganamos mesmo. E depois, é preciso acreditar que um dia podemos ter sorte. E como o melhor de estar vivo é saber que tudo muda, um dia muda tudo e ele aparece. Depois, é só deixa-lo ficar um dia atrás do outro... e se for mesmo ele, fica.
Margarida Rebelo Pinto
terça-feira
Devaneio
Amanhã mudo de vida. Amanhã acabo com isto. Amanhã faço as malas. Amanhã não faço a cama. Amanhã já não lhe lavo a roupa, nem lhe preparo o jantar. Amanhã serei outra. Amanhã é outro dia. Hoje, tenho que acabar com os planos para amanhã e fazer o que tenho para fazer: a loiça do almoço ainda está para lavar e tenho uma pilha de camisas para engomar, tenho que tirar as costeletas do congelador e fazer o arroz malandrinho, antes que comece a novela das sete.
Com tanta labuta faço a mala hoje ou amanhã?
Hoje já não tenho tempo, que ele às oito mete a chave à porta vindo do café do Manel para jantar, e amanhã….
Se calhar é melhor não ser amanhã, que ainda tenho o pó da cristaleira para limpar, e o corredor para encerar, não quero cá que a minha sogra e as minhas cunhadas quando vierem cá a casa, depois de me ter ido embora, digam que não tinha a casa como devia de ser… Ora, talvez quinta-feira dê mais jeito eu mudar de vida…
Mas quem é que muda a roupa da cama na sexta-feira?
Gracinda
segunda-feira
terça-feira
Insanidade
É amanhã. È já amanhã. Dói-me a cabeça, dói-me o corpo, dói-me a alma.
São 23.00h e falta apenas uma hora para amanhã. E depois faltam mais 16.00 horas, para a hora marcada.
Levanto-me da cama, que não desmanchei e vou respirar ar fresco para a janela, tento relaxar, olho a lua, as luzes dos carros que passam ao longe, procuro ouvir a noite, mas o pensamento que me atormenta não me abandona nem por um segundo:”Eu não quero, eu não quero, eu não posso e é já amanhã!”.
Volto-me, e olho para o vestido pendurado na porta do roupeiro. Tenho um vómito e corro para o quarto de banho, lavo a cara e sinto a maciez da pele que hoje estive a tratar todo o dia numa clínica de estética. Não tenho um pêlo a mais, as minhas unhas estão perfeitas, o meu corpo cheira a baunilha graças a tónicos, hidratantes e reafirmantes, o cabelo está lavado e brilhante, pronto para ser imaculadamente arranjado amanhã. Mas eu não quero. Eu não quero que amanhã seja amanhã, eu não quero vestir o vestido, eu não quero trocar juras e promessas que sei que nenhum de nós vai cumprir.
Telefono à minha irmã e digo-lhe “Guida eu não quero, amanhã não vou”. Ela desliga, pois sabe desde há muito que quando me dá esta determinação não vale a pena contra-argumentar. Certamente daqui a meia hora bate-me à porta. Espero 35 minutos e enquanto espero tento ler as revistas do jornal do fim-de-semana, por fim a campainha toca. Infelizmente não é só a Margarida que sobe, a mãe vem atrás de maxilares apertados e olhos estreitos, sinal do desespero que a invade, conheço-lhe a expressão de quando passava a hora de jantar e o pai não chegava. Sentam-se no sofá, a olhar para mim, esperam que fale, e eu lá começo a verbalizar a ladainha que me invade: “Eu não quero, eu não quero, eu amanhã não vou”. A mãe fica vermelha e abana a cabeça, a Guida, que agora reparo está parecidíssima com a mãe, tranquilamente explica-me que é normal o medo, a angústia, a aflição que sinto. Mas, que tudo passará e que o dia amanhã irá ser lindo e inesquecível e feliz e emocionante. Expludo (tal como elas temiam): “Vocês não percebem porra! O problema não é amanhã, é o resto da minha vida. Eu não quero ficar triste e amarga como vocês, sem espaço, sem vida, sem futuro”. A mãe levanta-se, dirige-se a mim, e em vez do estalo espectável, acaricia-me a face e diz baixinho: “mas a menina não precisa de ficar presa a vida toda, faz a festinha, faz a viagem, e depois logo vê… se não se entenderem, julga que o divórcio serve para quê?”
Fico boquiaberta a olhar para ela enquanto ela acrescenta:“e por favor não me faça essa desfeita, pois eu prometi à sua avó que Deus têm que só me separava do sacana do seu pai depois das meninas estarem casadas, e a menina já vai nos trinta, e eu não aguento mais o seu pai e olhe que até já falei com a advogado para avançar com os papéis na segunda-feira!”
Fico muda de espanto, olho para a Guida que permanece impávida e serena, certamente já sabia de tudo, se calhar até ajudou a mãe a encontrar o tal do advogado.
Olho de novo para a mãe e só consigo pensar que uma de nós três está insana. Mas qual?
Matilde
Dor
Tremem-me as mãos de ansiedade. Dói-me o peito. Só respiro porque faço o enorme esforço de pensar que tenho que respirar a cada segundo. Estou cega de pranto, as lágrimas são muitas mais do que as que cabem nos meus olhos.
Só vos peço que me deixem sossegada. Nestes momentos, não suporto que me toquem, não quero que me apazigúem, nem que me abracem, nem que se mostrem solidários. A raiva da dor é para ser vivida até ao limite, só assim poderá um dia abandonar-me.
Só vos peço que me deixem sossegada. Nestes momentos, não suporto que me toquem, não quero que me apazigúem, nem que me abracem, nem que se mostrem solidários. A raiva da dor é para ser vivida até ao limite, só assim poderá um dia abandonar-me.
Isabela
terça-feira
A paixão
Vejo esse brilho nos teus olhos pela milionésima vez.
Durante o jantar juras que é esta a mulher da tua vida. Argumentas da ligação kármica, dos mapas astrológicos que se completam, das frases que começas e ela acaba, da tremura que te dá ao ouvir a sua voz, das peles que se fundem e confundem numa intimidade secular, de te sentires verdadeiramente amado pela primeira vez.
A tua aura emana a energia fulminante da paixão.
Mas (mais uma vez), desde o inicio que esperava o mas, afinal veio a meio do prato principal, pois todas as tuas histórias têm sempre o mas, ela é casada tem crianças pequenas, não está de todo livre, vive o seu casamento tranquilo (e tu certamente quebras-lhe esse tédio) e perguntas-me o que fazer.
Não te sinto disponível para qualquer racionalidade, não vale a pena jurar-te que todas as paixões são sempre assim, nem contar-te que repetes nos teus (des)amores incessantemente o mesmo padrão. Nos últimos anos já viveste o mesmo mais de uma mão cheia, e já igualmente todas foram impossíveis, e por isso choras-te, e sofres-te e ficas-te de rastos, e deprimido e infeliz…
E assim será daqui a uns tempos, e o meu ombro vai ficar com baba e ranho e tirar-te da cama para o mundo vai ser uma nova aventura…
Mas agora comes tranquilamente, com os gestos seguros de quem se sente amado.
Como não queres ouvir a verdade respondo-te: vive a tua paixão, vamos brindar ao hoje e a esse teu grande, grande amor e venham as sobremesas.
Simone
Olhares
Há semanas que nos olhamos em silêncio.
Espio-te por cima do livro que (não) leio neste percurso á beira-mar. Tu pigarreias quando o comboio sacode e nesse instante levantas os olhos para mim. Eu baixo a cabeça. Saímos na mesma paragem e deixas-me sempre passar à tua frente como se me quisesses seguir, mas não segues. Eu desço para o metro e tu atravessas a Avenida para desaparecer até à manhã seguinte, onde recomeçamos a nossa dança do olhar.
Por vezes, antes de adormecer, juro a mim própria que será no dia seguinte que vou manter o meu olhar fixo em ti e obrigar-te a reagir nem que seja com um sorriso ténue.
Mas não consigo.
Não sei se o que me impede é a minha história, ou a tua, a que conta esse aro dourado que trazes no anelar esquerdo.
Diana
Espio-te por cima do livro que (não) leio neste percurso á beira-mar. Tu pigarreias quando o comboio sacode e nesse instante levantas os olhos para mim. Eu baixo a cabeça. Saímos na mesma paragem e deixas-me sempre passar à tua frente como se me quisesses seguir, mas não segues. Eu desço para o metro e tu atravessas a Avenida para desaparecer até à manhã seguinte, onde recomeçamos a nossa dança do olhar.
Por vezes, antes de adormecer, juro a mim própria que será no dia seguinte que vou manter o meu olhar fixo em ti e obrigar-te a reagir nem que seja com um sorriso ténue.
Mas não consigo.
Não sei se o que me impede é a minha história, ou a tua, a que conta esse aro dourado que trazes no anelar esquerdo.
Diana
quarta-feira
sexta-feira
Ficas?
Acordo.
Não reconheço o cenário.
O meu corpo está entrelaçado com o teu.
Doem-me as costas, mas se mudar de posição certamente acordo-te e não sei se quero que acordes, ainda.
Preciso de algum tempo para poisar neste lugar, nesta cama, neste quarto.
Dói-me a cabeça.
Ontem bebi demais, mas a conversa não tinha fim, e a boca ia ficando seca das palavras e de desejo.
Suspiras, espreguiças-te.
Suspiras, espreguiças-te.
Sustenho a respiração, um arrepio invade-me a barriga, agora é que vai ser, vais olhar para mim e perguntar-te porque é que ainda estou aqui.
Abres os olhos, sorris, abraças-me e sussurras-me lambendo-me a orelha, ainda bem que ficas-te, ainda bem que te conheci.
Estremeço.
Viro-me e olho para ti, perscruto o fundo desses lagos castanhos que te iluminam a cara e vejo uma sinceridade imensa, que me espanta.
Perguntas-me se fico.
Respondo-te se queres mesmo que fique ou se estás apenas a ser simpático porque o pequeno-almoço tardio não é uma obrigação.
Ris.
Tens as gargalhadas mais bonitas que já ouvi.
Deitas-te em cima de mim e esclareces: não te perguntei se ficavas para o pequeno-almoço, perguntei se ficavas na minha vida.
Rio-me, com gargalhadas que nunca me tinha ouvido.
Beijo-te e não respondo.
Já tenho vida suficiente para saber que estas histórias que começam pela cama são o que são.
Voltas a beijar-me, lambuzas-me toda, inundas-me de novo de desejo.
Suamos.
Insistes em levar-me ao colo para a banheira.
Enquanto me lavas, como me fosse uma criança, voltas a perguntar: ficas?
Volto a procurar os teus olhos.
Enrosco-me no teu corpo e respondo baixinho: não sei, a Corín Tellado já morreu….
Lúcia
terça-feira
O direito a escolher
Vamos fazer tudo ao nosso alcance, diz-me o senhor de bata branca quando me devolve os exames que arrumo no saco de papel. Estende-me a mão, aperta-me o braço em sinal de apoio e comiseração. Mas eu já não estou ali. Parti no exacto instante em que pedi a verdade, em que não me contentei com o talvez e exigi a data limite para o aceitável, para a qualidade de vida que tenho agora. Nunca me pensei capaz de tantas decisões em tão curto espaço de tempo, mas desde que ouvi 2 talvez 3 meses, se não fizer nenhum tratamento, tudo ficou claro na minha vida e iluminado na minha mente. Tomei dezenas de decisões, fiz escolhas, arquitectei planos, com uma bravura que não conhecia em mim. Quando desci as escadas e deitei o saco de papel no lixo, porque não ia voltar ali, já sabia o que fazer:
- libertar-me de todo o acessório e centrar-me no essencial;
- passar o tempo com os que amo;
- jamais perder um segundo a chorar ou a ter medo;
- não voltar a trabalhar (as minhas economias permitir-me-ão viver com o máximo de qualidade no resto da minha vida);
- dormir o menos possível;
- ler os livros que me faltam;
- ir ao teatro;
- passear na praia;
- organizar algumas festas para os verdadeiros amigos;
- distribuir sorrisos e abraços,
- oferecer a cada um dos que amo algo que sei que gostariam de ter;
- nunca ter pena de mim.
Interiorizar que tudo isto pode ser um privilégio, ao permitir-me o exacto tempo da despedida, que todos os outros que não sabem o seu prazo nunca viverão. Ser dona e senhora de mim , da minha qualidade de vida e escolher partir antes que a degradação e a dependência me invadam. Ser eu.
Em memória de S. que escolheu lutar, nas não sobreviveu.
Eulália
quinta-feira
Á janela
Gosto de tomar chá logo pela manhã, quando a casa está em silêncio (ainda todos dormem). Encostada ao balcão da cozinha, à espera que a chaleira apite, a cadela a roçar-se nas minhas pernas a pedir mimo, olho a rua. Vejo os carros que já passam com gente ainda estremunhada e a novela que invento com as vidas dos meus vizinhos do outro lado da rua. Vejo-a sair apressada, do 56, só pode vir da cave esquerda, é donde elas vêem com alguma frequência. Trás a roupa amarfanhada, o cabelo em desalinho, enfia-se no carro, certamente vai a casa tomar um duche e mudar de roupa depois de uma noite com o garanhão cá da rua. Do meu ponto de vigia, desta imensa janela da cozinha, já assisti pelas manhãs a beijos cinematográficos com loiras, a despedidas chorosas de ruivas, a partidas intempestivas de morenas, e a muitas destas saídas apressadas de mulheres felizes com a roupa amarrotada (o garanhão deve ter um não sei quê, que eu não lhe encontro). Sorrio, beberico o meu chá e relembro, outra existência, outro século, em que a minha vida também era esta, dormir em cama alheia, ir a casa de manhã tomar um duche, trocar de roupa e sair para o trabalho com um sorriso nos lábios e o corpo dorido. Sinto como se tivesse sido há muito tempo, um tempo infinito para lá do real em que era tresloucadamente feliz, era tão livre, tão dona de mim, das minhas escolhas e o do meu destino.
E depois perdi-me e quis cama fixa, e depois nasceste tu e depois eu fiz de conta que era outra ou esta escolha tornou-me outra, sei lá: senhora de uma família arrumada, organizada, acomodada, moderadamente feliz. È verdade que te amo até ao infinito de mim, mas por instantes invejei a mulher que saiu do 56, por momentos dava tudo para voltar a ser integralmente livre, outra vez. E o que me dói é saber que por mais que perceba que a liberdade é a minha essência, por ti, nunca mais poderei ser eu.
Carmo
E depois perdi-me e quis cama fixa, e depois nasceste tu e depois eu fiz de conta que era outra ou esta escolha tornou-me outra, sei lá: senhora de uma família arrumada, organizada, acomodada, moderadamente feliz. È verdade que te amo até ao infinito de mim, mas por instantes invejei a mulher que saiu do 56, por momentos dava tudo para voltar a ser integralmente livre, outra vez. E o que me dói é saber que por mais que perceba que a liberdade é a minha essência, por ti, nunca mais poderei ser eu.
Carmo
quarta-feira
Luto
Vesti aquele vestido negro do qual gostavas de puxar o fecho lambendo-me as costas por sobre a combinação de renda que te excitava. Apanhei o cabelo, como me dizias que me dava um ar de miúda traquina, calcei as sandálias de salto alto que gostavas de me desapertar, quando voltávamos para casa depois das festas. E fui esperar por ti…
Enquanto esperava, usei os metros e metros de tule que tinha comprado horas antes, quando a esperança já estava perdida, dispus as mais exóticas flores por todo o salão, indiquei onde colocar árvores e palmeiras, acendi velas e incensos, distribuí anjos e arcanjos e continuei a esperar por ti…
Quando chegas-te, quis permanecer sozinha, ainda que no meio de muita gente que te queria homenagear e partilhar comigo a nossa dor. Mas não é possível compartilhar a nossa despedida com mais ninguém, nem com os nossos filhos…
Acariciei-te de mansinho, disse-te o quanto te amava e o quando te odiava por me deixares assim, agradeci-te tudo o que me deste e amaldiçoei-te por tudo o que ainda me poderias ter dado.
Beijei-te, e tu não me retribuíste como de costume.
Chorei…
Porque é que já não me queres? Porque é que te foste embora, assim?
Amélia
Enquanto esperava, usei os metros e metros de tule que tinha comprado horas antes, quando a esperança já estava perdida, dispus as mais exóticas flores por todo o salão, indiquei onde colocar árvores e palmeiras, acendi velas e incensos, distribuí anjos e arcanjos e continuei a esperar por ti…
Quando chegas-te, quis permanecer sozinha, ainda que no meio de muita gente que te queria homenagear e partilhar comigo a nossa dor. Mas não é possível compartilhar a nossa despedida com mais ninguém, nem com os nossos filhos…
Acariciei-te de mansinho, disse-te o quanto te amava e o quando te odiava por me deixares assim, agradeci-te tudo o que me deste e amaldiçoei-te por tudo o que ainda me poderias ter dado.
Beijei-te, e tu não me retribuíste como de costume.
Chorei…
Porque é que já não me queres? Porque é que te foste embora, assim?
Amélia
Para a F. que perdeu o seu amor de uma vida.
terça-feira
Fado
Está calor. Abro a janela e mergulho na luz e no sol. Fico quieta a absorver as carícias que o tempo me faz. Espreguiço-me. Prepara um banho, um mar de sais e espuma. O rádio toca lastimosas cantigas de amor. O castelhano torna tudo mais meloso, mais sentido, mais dolente. O caos da cidade não chega aqui. Os discursos inflamados do líder ufano só se farão ouvir lá mais para o entardecer. Mergulho nesta banheira que cheira a baunilha e a frutos exóticos e penso como a vida dá tanta volta. E que volta esta que me pôs do outro lado do mundo. Há meia dúzia de anos este seria o cenário mais improvável da minha vida. Mas entre perdas, escolhas, oportunidades, sofrimento, trabalho, sorte, preserverança, teimosia, cheguei aqui. Cá estou. E não posso deixar de concluir que tem mesmo que existir um destino, esse fado luso que me trouxe até aqui. Para quê, ainda não sei, mas vou descobrir nos próximos meses.
Joana
quarta-feira
Encontro
É na rua que te encontro. Sozinha. Perdida. Sem saber quem és, nem para onde queres ir. Tens uns olhos bonitos, mas assustados. Pressinto um corpo firme, por debaixo do casaco que te abriga. Suponho que tenhas 35, 38 anos. Nunca fui bom a adivinhar idades, muitos menos de mulheres, que parecem ter o segrego de enganar o tempo da vida. A tua boca é perfeita, embora os cantos descaiam, na antecipação do choro que te atormenta. A tua voz, que ouvi quando me respondeste sucessivamente não sei, é serena, ligeiramente rouca, talvez por alguns anos de tabaco, ou quem sabe por uma constipação que te maltrata. Quando peguei no teu braço, para te afastar da estrada onde quase te tinha atropelado, senti o calor morno do teu corpo. Estranhei não te teres retraído com medo de um desconhecido, antes te deixaste guiar serenamente, tendo por segundos os nossos ombros seguido unidos para um destino qualquer. Deixei-te no passeio, enquanto voltava ao carro para o encostar à beira da estrada. Por segundos, os faróis iluminaram-te de forma cinéfila. Linda. Tu num passeio vazio. Triste. Perdida. Infinitamente só. Voltei para te perguntar se ficavas bem, se precisavas de alguma coisa, se querias telefonar a alguém. Voltei porque não me conseguia ir embora.
Olhas-te para mim e sem me responder dirigiste-te para o meu carro e sentaste-te. Segui-te. Entrei no carro e perguntei-te para onde ir. Não sei, respondeste mais uma vez, com a tua voz rouca e serena. Liguei o carro e comecei a percorrer as principais artérias da cidade, contigo ao meu lado, como se fossemos mais um casal que regressa a casa no final de um dia de trabalho. Tu continuavas em silêncio, olhando em frente, como se fosses num caminho que conhecias de cor. Parei à porta de minha casa. Chegámos, disse-te. Saíste do carro e seguiste-me. Abri a porta da rua e entraste. Disseste boa noite à vizinha do 1º que se cruzou connosco nas escadas. Quando abri a porta de casa e te deixei passar, instintivamente ligaste a luz do corredor. Já na sala, despiste o casaco e olhaste para mim. Sorriste e enroscaste-te no sofá. Fiquei parado a olhar para ti. Nunca nenhuma mulher tinha ficado tão bem no meu velho sofá de xadrez. Nunca. Aliás, aquele sofá já não era meu, correspondia ao exacto contorno do teu corpo. Perguntei se tinhas fome. Abanaste a cabeça em negativa. Disseste para me sentar no teu sofá porque tínhamos que conversar. Sentei-me. Disseste-me, tens um problema. Eu fiquei calado a olhar para ti. Continuaste, não permitiste que o meu destino se cumprisse, por isso, agora eu passo a ser o teu destino. Sorri. È tudo perguntei. Assentiste com cabeça. É que isso eu já sabia, respondi. Levantei-me e fui fazer o jantar. Minutos depois estavas a meu lado.
Olhas-te para mim e sem me responder dirigiste-te para o meu carro e sentaste-te. Segui-te. Entrei no carro e perguntei-te para onde ir. Não sei, respondeste mais uma vez, com a tua voz rouca e serena. Liguei o carro e comecei a percorrer as principais artérias da cidade, contigo ao meu lado, como se fossemos mais um casal que regressa a casa no final de um dia de trabalho. Tu continuavas em silêncio, olhando em frente, como se fosses num caminho que conhecias de cor. Parei à porta de minha casa. Chegámos, disse-te. Saíste do carro e seguiste-me. Abri a porta da rua e entraste. Disseste boa noite à vizinha do 1º que se cruzou connosco nas escadas. Quando abri a porta de casa e te deixei passar, instintivamente ligaste a luz do corredor. Já na sala, despiste o casaco e olhaste para mim. Sorriste e enroscaste-te no sofá. Fiquei parado a olhar para ti. Nunca nenhuma mulher tinha ficado tão bem no meu velho sofá de xadrez. Nunca. Aliás, aquele sofá já não era meu, correspondia ao exacto contorno do teu corpo. Perguntei se tinhas fome. Abanaste a cabeça em negativa. Disseste para me sentar no teu sofá porque tínhamos que conversar. Sentei-me. Disseste-me, tens um problema. Eu fiquei calado a olhar para ti. Continuaste, não permitiste que o meu destino se cumprisse, por isso, agora eu passo a ser o teu destino. Sorri. È tudo perguntei. Assentiste com cabeça. É que isso eu já sabia, respondi. Levantei-me e fui fazer o jantar. Minutos depois estavas a meu lado.
Pedro
sábado
Vida
Vi-te pelo canto do olho. Cheirei-te à distância. Desejei-te.
Aproximei-me. Fui directa.
Quero conhecer-te. Quero saciar-me.
Respondeste com a certeza que eu antecipava.
Vamos.
E fomos. E matámos a fome.
E saciados descobrimos que já nos conhecíamos.
Vitória
Vitória
Fui
Fui ontem o que já não sou hoje.
Fui mulher ávida de vida, amante ansiosa em busca de ti, mãe apaixonada à procura de mim.
Fui tudo. Fui todos.
Por muitos anos, fui.
Agora tu morreste, os miúdos partiram.
E eu não quero ficar aqui sozinha embrulhada em prantos e lamentos, a azedar nesta solidão imensa.
Não é o meu estilo, nem sei como o fazer.
Eu fui sempre festa e alegria, prazer e desengano, gargalhada e brincadeira.
Mas fui.
Já não sou.
Por isso, vou.
Isilda
Fui mulher ávida de vida, amante ansiosa em busca de ti, mãe apaixonada à procura de mim.
Fui tudo. Fui todos.
Por muitos anos, fui.
Agora tu morreste, os miúdos partiram.
E eu não quero ficar aqui sozinha embrulhada em prantos e lamentos, a azedar nesta solidão imensa.
Não é o meu estilo, nem sei como o fazer.
Eu fui sempre festa e alegria, prazer e desengano, gargalhada e brincadeira.
Mas fui.
Já não sou.
Por isso, vou.
Isilda
quarta-feira
Corro
Corro para o duche. Corro para o carro. Conduzo alucinadamente. Corro para o emprego. Corro para reuniões. Corro para o ginásio na hora de almoço. Corro para o refeitório e devoro o almoço em 5 minutos. Corro para outras reuniões. Corro para preparar documentos sempre urgentes. Corro, ao fim do dia, desesperadamente para casa. Corro a fazer o jantar. Corro a arrumar e a limpar. Corro a ligar todas as máquinas que supostamente me ajudariam a não correr. Engulo a comida de corrida enquanto espreito os noticiários, salto os canais para obter o máximo de informação no mínimo tempo disponível. Corro a arrumar a cozinha. Corro a preparar a roupa para o dia seguinte [que sei será estupidamente igual a todos os outros]. Corro para a cama. Corro para um sono apressado… sonho a correr para acordar bem cedo e recomeçar esta corrida infinita, que me preenche os dias e me esvazia o ser.
… estupidamente nunca corro para os teus (a)braços....
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