quarta-feira

O convite



Não me interessa qual é o teu modo de vida. Quero saber o que anseias, e se ousas sonhar conhecer os desejos do teu coração.

Não me interessa que idade tens. Quero saber se arriscas procurar que nem um louco o amor, os sonhos, a aventura de estar vivo.

Não me interessa saber quais os planetas que estão em quadratura com a tua lua. Quero saber se tocaste o centro da tua própria dor, se estiveste aberto às traições da vida ou se encolheste e te fechaste com medo de outros sofrimentos! Quero saber se consegues sentar-te com a dor, a minha ou a tua, sem te mexeres para a esconder, disfarçar ou compor. Quero saber se consegues viver a alegria, a minha ou a tua; se consegues dançar com loucura e deixar que o êxtase te encha até às pontas dos pés e das mãos sem nos advertires para termos cuidado, sermos realistas, ou nos relembrares as limitações do ser humano.


Não me interessa se a história que contas é verdadeira. Quero saber se consegues desapontar o outro para seres verdadeiro contigo mesmo; se consegues suportar a traição e não atraiçoares a tua própria alma. Quero saber se consegues ser fiel e, por isso, digno de confiança. Quero saber se consegues ver beleza mesmo num dia não muito bonito, e se consegues alimentar a tua vida da presença de Deus. Quero saber se consegues viver com o erro, teu e meu, e mesmo assim ficar de pé à beira de um lago e gritar à Lua prateada, "Sim!".


Não me interessa onde vives nem quanto dinheiro tens. Quero saber se, depois de uma noite de dor e desespero, exausto, dorido até ao tutano, consegues levantar-te e ocupares-te das necessidades das crianças.

Não me interessa quem és, como chegaste aqui. Quero saber se permaneces no centro do fogo comigo sem te ires embora.


Não me interessa onde ou o quê ou com quem estudaste. Quero saber o que te sustém interiormente quando tudo o mais cai à tua volta.


Quero saber se consegues estar só contigo mesmo; e se verdadeiramente gostas da companhia que tens nos momentos vazios.





O CONVITE, de Oriah Mountain Dreamer, Maio, 1994


in INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL, QEs, Danah Zohar e Ian Marshall, Ed Sinais de Fogo

terça-feira

In[Felicidade]








Embalo-te docemente, mesmo depois de teres adormecido, só pelo prazer de sentir o teu corpo quentinho contra o meu.



Depois de te adorar, como a Madonna venerou o seu menino, deito-te no berço e corro a enfiar-me na cama e a enroscar-me no corpo de teu pai, que ressona baixinho, e que mesmo a dormir me abraça e me beija os cabelos.



Fecho os olhos à espera do sono que teima em não vir. [Como não veio ontem, nem anteontem, nem em todos os dias antes desse, desde a noite em que numa espécie de caneta branca surgiram dois riscos azuis paralelos e tu chegas-te à minha vida].



Depois de mais de uma hora à espera dos sonhos que não chegam, desisto. Saio de mansinho da cama, vou até ao teu quarto espiar o teu sono abençoado e refugio-me na sala, com a minha eterna manta e um livro qualquer.




O sofá recebe-me amavelmente. Já conhece, de cor, os mais secretos contornos do meu corpo tantas as noites que partilhámos nos últimos anos. Mas o livro não me ocupa a mente, de repente o peito quase explode de ansiedade, o coração cavalga que nem potro doido, o suor inunda-me o corpo. Respiro fundo, procuro acalmar-me, faço todas as manobras que o terapeuta me ensinou [e que já sei não irão resultar].



Lavada em lágrimas tacteio o armário dos medicamentos em busca dos comprimidos de emergência, tomo-os na cozinha, com água da torneira, mas com os olhos postos na garrafa de vinho que me apetecia abrir, para que o cocktail actuasse mais depressa e me levasse para outras paragens.



Resisto à vontade do álcool e volto ao sofá onde me enrosco, qual cadela de rua abandonada à sua sorte, e me embalo no meu próprio pranto surdo. Porque é que sou tão infeliz, quando tenho uma criança linda e saudável, um companheiro de vida, tudo aquilo de que preciso.



Parto para o interior mim, para [mais uma vez] descobrir aquilo que já sei, sou paradoxalmente amargurada porque vos tenho e vos amo, sou profundamente infeliz porque não posso ser quem sou, estou visceralmente triste porque contrariei o meu sentir, o meu caminho, a minha essência: a da liberdade. Só livre, sem laços, sem amarras, sem compromissos, poderia ser eu, plena, completa, inteira, feliz.

Sofia