quinta-feira

Á janela

Gosto de tomar chá logo pela manhã, quando a casa está em silêncio (ainda todos dormem). Encostada ao balcão da cozinha, à espera que a chaleira apite, a cadela a roçar-se nas minhas pernas a pedir mimo, olho a rua. Vejo os carros que já passam com gente ainda estremunhada e a novela que invento com as vidas dos meus vizinhos do outro lado da rua. Vejo-a sair apressada, do 56, só pode vir da cave esquerda, é donde elas vêem com alguma frequência. Trás a roupa amarfanhada, o cabelo em desalinho, enfia-se no carro, certamente vai a casa tomar um duche e mudar de roupa depois de uma noite com o garanhão cá da rua. Do meu ponto de vigia, desta imensa janela da cozinha, já assisti pelas manhãs a beijos cinematográficos com loiras, a despedidas chorosas de ruivas, a partidas intempestivas de morenas, e a muitas destas saídas apressadas de mulheres felizes com a roupa amarrotada (o garanhão deve ter um não sei quê, que eu não lhe encontro). Sorrio, beberico o meu chá e relembro, outra existência, outro século, em que a minha vida também era esta, dormir em cama alheia, ir a casa de manhã tomar um duche, trocar de roupa e sair para o trabalho com um sorriso nos lábios e o corpo dorido. Sinto como se tivesse sido há muito tempo, um tempo infinito para lá do real em que era tresloucadamente feliz, era tão livre, tão dona de mim, das minhas escolhas e o do meu destino.
E depois perdi-me e quis cama fixa, e depois nasceste tu e depois eu fiz de conta que era outra ou esta escolha tornou-me outra, sei lá: senhora de uma família arrumada, organizada, acomodada, moderadamente feliz. È verdade que te amo até ao infinito de mim, mas por instantes invejei a mulher que saiu do 56, por momentos dava tudo para voltar a ser integralmente livre, outra vez. E o que me dói é saber que por mais que perceba que a liberdade é a minha essência, por ti, nunca mais poderei ser eu.

Carmo