terça-feira

O direito a escolher


Vamos fazer tudo ao nosso alcance, diz-me o senhor de bata branca quando me devolve os exames que arrumo no saco de papel. Estende-me a mão, aperta-me o braço em sinal de apoio e comiseração. Mas eu já não estou ali. Parti no exacto instante em que pedi a verdade, em que não me contentei com o talvez e exigi a data limite para o aceitável, para a qualidade de vida que tenho agora. Nunca me pensei capaz de tantas decisões em tão curto espaço de tempo, mas desde que ouvi 2 talvez 3 meses, se não fizer nenhum tratamento, tudo ficou claro na minha vida e iluminado na minha mente. Tomei dezenas de decisões, fiz escolhas, arquitectei planos, com uma bravura que não conhecia em mim. Quando desci as escadas e deitei o saco de papel no lixo, porque não ia voltar ali, já sabia o que fazer:
- libertar-me de todo o acessório e centrar-me no essencial;
- passar o tempo com os que amo;
- jamais perder um segundo a chorar ou a ter medo;
- não voltar a trabalhar (as minhas economias permitir-me-ão viver com o máximo de qualidade no resto da minha vida);
- dormir o menos possível;
- ler os livros que me faltam;
- ir ao teatro;
- passear na praia;
- organizar algumas festas para os verdadeiros amigos;
- distribuir sorrisos e abraços,
- oferecer a cada um dos que amo algo que sei que gostariam de ter;
- nunca ter pena de mim.

Interiorizar que tudo isto pode ser um privilégio, ao permitir-me o exacto tempo da despedida, que todos os outros que não sabem o seu prazo nunca viverão. Ser dona e senhora de mim , da minha qualidade de vida e escolher partir antes que a degradação e a dependência me invadam. Ser eu.


Em memória de S. que escolheu lutar, nas não sobreviveu.

Eulália