terça-feira

O direito a escolher


Vamos fazer tudo ao nosso alcance, diz-me o senhor de bata branca quando me devolve os exames que arrumo no saco de papel. Estende-me a mão, aperta-me o braço em sinal de apoio e comiseração. Mas eu já não estou ali. Parti no exacto instante em que pedi a verdade, em que não me contentei com o talvez e exigi a data limite para o aceitável, para a qualidade de vida que tenho agora. Nunca me pensei capaz de tantas decisões em tão curto espaço de tempo, mas desde que ouvi 2 talvez 3 meses, se não fizer nenhum tratamento, tudo ficou claro na minha vida e iluminado na minha mente. Tomei dezenas de decisões, fiz escolhas, arquitectei planos, com uma bravura que não conhecia em mim. Quando desci as escadas e deitei o saco de papel no lixo, porque não ia voltar ali, já sabia o que fazer:
- libertar-me de todo o acessório e centrar-me no essencial;
- passar o tempo com os que amo;
- jamais perder um segundo a chorar ou a ter medo;
- não voltar a trabalhar (as minhas economias permitir-me-ão viver com o máximo de qualidade no resto da minha vida);
- dormir o menos possível;
- ler os livros que me faltam;
- ir ao teatro;
- passear na praia;
- organizar algumas festas para os verdadeiros amigos;
- distribuir sorrisos e abraços,
- oferecer a cada um dos que amo algo que sei que gostariam de ter;
- nunca ter pena de mim.

Interiorizar que tudo isto pode ser um privilégio, ao permitir-me o exacto tempo da despedida, que todos os outros que não sabem o seu prazo nunca viverão. Ser dona e senhora de mim , da minha qualidade de vida e escolher partir antes que a degradação e a dependência me invadam. Ser eu.


Em memória de S. que escolheu lutar, nas não sobreviveu.

Eulália

quinta-feira

Á janela

Gosto de tomar chá logo pela manhã, quando a casa está em silêncio (ainda todos dormem). Encostada ao balcão da cozinha, à espera que a chaleira apite, a cadela a roçar-se nas minhas pernas a pedir mimo, olho a rua. Vejo os carros que já passam com gente ainda estremunhada e a novela que invento com as vidas dos meus vizinhos do outro lado da rua. Vejo-a sair apressada, do 56, só pode vir da cave esquerda, é donde elas vêem com alguma frequência. Trás a roupa amarfanhada, o cabelo em desalinho, enfia-se no carro, certamente vai a casa tomar um duche e mudar de roupa depois de uma noite com o garanhão cá da rua. Do meu ponto de vigia, desta imensa janela da cozinha, já assisti pelas manhãs a beijos cinematográficos com loiras, a despedidas chorosas de ruivas, a partidas intempestivas de morenas, e a muitas destas saídas apressadas de mulheres felizes com a roupa amarrotada (o garanhão deve ter um não sei quê, que eu não lhe encontro). Sorrio, beberico o meu chá e relembro, outra existência, outro século, em que a minha vida também era esta, dormir em cama alheia, ir a casa de manhã tomar um duche, trocar de roupa e sair para o trabalho com um sorriso nos lábios e o corpo dorido. Sinto como se tivesse sido há muito tempo, um tempo infinito para lá do real em que era tresloucadamente feliz, era tão livre, tão dona de mim, das minhas escolhas e o do meu destino.
E depois perdi-me e quis cama fixa, e depois nasceste tu e depois eu fiz de conta que era outra ou esta escolha tornou-me outra, sei lá: senhora de uma família arrumada, organizada, acomodada, moderadamente feliz. È verdade que te amo até ao infinito de mim, mas por instantes invejei a mulher que saiu do 56, por momentos dava tudo para voltar a ser integralmente livre, outra vez. E o que me dói é saber que por mais que perceba que a liberdade é a minha essência, por ti, nunca mais poderei ser eu.

Carmo

quarta-feira

Luto

Vesti aquele vestido negro do qual gostavas de puxar o fecho lambendo-me as costas por sobre a combinação de renda que te excitava. Apanhei o cabelo, como me dizias que me dava um ar de miúda traquina, calcei as sandálias de salto alto que gostavas de me desapertar, quando voltávamos para casa depois das festas. E fui esperar por ti…

Enquanto esperava, usei os metros e metros de tule que tinha comprado horas antes, quando a esperança já estava perdida, dispus as mais exóticas flores por todo o salão, indiquei onde colocar árvores e palmeiras, acendi velas e incensos, distribuí anjos e arcanjos e continuei a esperar por ti…

Quando chegas-te, quis permanecer sozinha, ainda que no meio de muita gente que te queria homenagear e partilhar comigo a nossa dor. Mas não é possível compartilhar a nossa despedida com mais ninguém, nem com os nossos filhos…

Acariciei-te de mansinho, disse-te o quanto te amava e o quando te odiava por me deixares assim, agradeci-te tudo o que me deste e amaldiçoei-te por tudo o que ainda me poderias ter dado.
Beijei-te, e tu não me retribuíste como de costume.
Chorei…
Porque é que já não me queres? Porque é que te foste embora, assim?

Amélia
Para a F. que perdeu o seu amor de uma vida.

terça-feira

Fado


Está calor. Abro a janela e mergulho na luz e no sol. Fico quieta a absorver as carícias que o tempo me faz. Espreguiço-me. Prepara um banho, um mar de sais e espuma. O rádio toca lastimosas cantigas de amor. O castelhano torna tudo mais meloso, mais sentido, mais dolente. O caos da cidade não chega aqui. Os discursos inflamados do líder ufano só se farão ouvir lá mais para o entardecer. Mergulho nesta banheira que cheira a baunilha e a frutos exóticos e penso como a vida dá tanta volta. E que volta esta que me pôs do outro lado do mundo. Há meia dúzia de anos este seria o cenário mais improvável da minha vida. Mas entre perdas, escolhas, oportunidades, sofrimento, trabalho, sorte, preserverança, teimosia, cheguei aqui. Cá estou. E não posso deixar de concluir que tem mesmo que existir um destino, esse fado luso que me trouxe até aqui. Para quê, ainda não sei, mas vou descobrir nos próximos meses.
Joana