segunda-feira

Na cama

..."E quando, enfim, caí nos seus braços, descobri que tanto se me dava que fosse ele ou o Vasco desde que qualquer deles me fizesse esquecer o outro.
È assim que a gente pensa, muitas vezes, apesar das nossa juras de amor eterno, por razões que passam por outros lugares distantes que nem podemos descortinar e que só raramente têm que ver com o que realmente se passa entre duas almas.
Isto, ao mesmo tempo em que o Nuno me dava repetidos beijos no cabelo e eu lhe dizia, convicta, serás sempre o homem da minha vida.
Mas o Nuno tinha esse defeito terrível que certos homens têm de não perceberem que na cama, só na cama a gente tem direito a dizer exactamente o que nos vai na cabeça, e a ser tudo, e que isso é muito importante porque nos ajuda, fora dela, a sermos pessoas verdadeiramente saudáveis e fiéis.
Mas ele não percebia, coitado, e digo coitado por saber que isso o vedava a alguma beleza, e tive então que lhe dar muito mais beijos do que o costume, e fingir que estaria a provocá-lo para aumentar o seu desejo, e ele acabou por convencer-se em aderir àquilo fechando os olhos e agarrando-me como quem se agarra a si próprio para não se atirar duma ponte abaixo.
A cena fora sórdida, violenta, desonesta, e eu pensava que o mais estranho de tudo era que nunca o Nuno atingira antes um fervor tão grande, senão enquanto estava a sentir-se traído como naquela altura, o que me demonstrava à saciedade que, não fosse a infracção, haveria com certeza homens e mulheres que morreriam sem grande conhecimento de si próprios o que à data me parecia imperdoável.
Comigo foi diferente porque enquanto ele comprovou naquela noite que me amava só a mim, eu descobri que não o amava a ele nem ao Vasco, o que me obrigou a estrear, por circunstâncias que tinham contribuído para aquilo e me transcendiam, mais uma semana de desconfortável indignidade pessoal."…

in "Uma Mulher Não Chora"
Rita Ferro
Contexto, 1997
págs 74 e 75