quarta-feira

Dependência



Este sono induzido que me imponho tolhe-me a mente, prende-me a voz, quebra-me os sentidos. Descansa-me. Liberta-me do tempo que não tenho, da paz que não sinto, da angústia que não consigo apaziguar, da fome que me devora, da raiva que me inunda.
Só assim, consigo repetir todos os dias os mesmos gestos, as mesmas frases, os mesmos percursos.
Só assim sobrevivo, entre o metro e o emprego, entre o autocarro e a casa, entre a sala e a cozinha, entre a cama e a minha alma.

Carolina

sexta-feira

Mãe

Finalmente saiu-te de rajada o que te andava atravessado na garganta há mais de 2 anos: “ Não aguento mais esta merda. Quero uma mulher e desde que a Maria nasceu, aliás desde que ficaste grávida, porra, és só mãe, só mãe, só mãe, e eu? Só servi para te fazer um filho, não foi?”. Tive para responder francamente: “Foi, foi isso mesmo”. Mas mais uma vez fui sobretudo mãe e não quero que a Maria, para já, seja uma filha dividido por dois, transformada numa mochila arrumada de 15 em 15 dias.
Por enquanto a Maria ainda precisa de um pai presente cá em casa.
Por ela, por isso, inspirei fundo, bati a pestana, lambi o lábio, e disse-te baixinho: “amor ando cansada, mas tenho sempre um tempinho para ti, anda, vamos para a cama, vá lá…”.
E tu vieste. E passou-te a fúria, e esqueceste tudo o resto, como é habitual, e eu gemendo aqui e ali, para te agradar, distrai-me a pensar em como seria bom que a Maria tivesse uma mana redondinha, fresquinha a cheirar a leite e a bebé.
Que bom que é ser mãe…


Brígida

(des)Conversas (cont.)

P.S.
Continuas na mesma…
Continuas a telefonar-me fora de horas…
Quisera entender o verdadeiro significado de tal…
Sinceramente, sinto ternura… não sinto mais paixão.
Nem desejo.
Continuas na mesma… sem partilhar comigo o que sentes.
E sabes que para mim, criar intimidade é mais fascinante que a fase de sedução! É uma fase mais serena que a da paixão… mas permite aquela sensação única da partilha de sentires, de afectos, de desejos, de fantasias…a tal da "sincronia afectiva".
Dá uma trabalheira criar intimidade!!
Mas não desisto!
Pois... oxalá um dia entendas a diferença entre desejar e amar uma mulher…


Vanessa

Ainda amantes?

Rolas para longe, depois do fim, (antes ficavas dentro de mim a acariciar-me os cabelos), levantas-te e vais tomar duche (antes aproveitavas todos os minutos e querias ficar com os meu cheiro o resto da noite, ou dia), quando voltas à cama ligas a tv e ficas calado a zipar os canais (antes conversávamos sobre nós, exigias mesmo que te descrevesse o meu quotidiano para saberes a cada momento em que não estavas comigo o que era suposto eu estar a fazer), olhas para o relógio e dizes que a Bé já deve estar à tua espera para o jantar e que talvez os miúdos até já tenham jantado (antes nunca tinhas pressa e a tua vida com a tua família não entrava na nossa intimidade), começas a vestir-te quando reparas (enfim) que permaneci calada. Perguntas-me distraidamente “o que é que tens?” (antes terias acrescentado um querida, ou um meu amor) enquanto abotoas os teus botões de punho. Procuro os teus olhos para te responder, mas não os encontro, pois continuam presos ao noticiário da tv e respondo, perguntando “já não somos amantes, pois não?”


Eunice

segunda-feira

Na cama

..."E quando, enfim, caí nos seus braços, descobri que tanto se me dava que fosse ele ou o Vasco desde que qualquer deles me fizesse esquecer o outro.
È assim que a gente pensa, muitas vezes, apesar das nossa juras de amor eterno, por razões que passam por outros lugares distantes que nem podemos descortinar e que só raramente têm que ver com o que realmente se passa entre duas almas.
Isto, ao mesmo tempo em que o Nuno me dava repetidos beijos no cabelo e eu lhe dizia, convicta, serás sempre o homem da minha vida.
Mas o Nuno tinha esse defeito terrível que certos homens têm de não perceberem que na cama, só na cama a gente tem direito a dizer exactamente o que nos vai na cabeça, e a ser tudo, e que isso é muito importante porque nos ajuda, fora dela, a sermos pessoas verdadeiramente saudáveis e fiéis.
Mas ele não percebia, coitado, e digo coitado por saber que isso o vedava a alguma beleza, e tive então que lhe dar muito mais beijos do que o costume, e fingir que estaria a provocá-lo para aumentar o seu desejo, e ele acabou por convencer-se em aderir àquilo fechando os olhos e agarrando-me como quem se agarra a si próprio para não se atirar duma ponte abaixo.
A cena fora sórdida, violenta, desonesta, e eu pensava que o mais estranho de tudo era que nunca o Nuno atingira antes um fervor tão grande, senão enquanto estava a sentir-se traído como naquela altura, o que me demonstrava à saciedade que, não fosse a infracção, haveria com certeza homens e mulheres que morreriam sem grande conhecimento de si próprios o que à data me parecia imperdoável.
Comigo foi diferente porque enquanto ele comprovou naquela noite que me amava só a mim, eu descobri que não o amava a ele nem ao Vasco, o que me obrigou a estrear, por circunstâncias que tinham contribuído para aquilo e me transcendiam, mais uma semana de desconfortável indignidade pessoal."…

in "Uma Mulher Não Chora"
Rita Ferro
Contexto, 1997
págs 74 e 75