domingo

Grito?

Porque é que tu não queres ver? Porque é que finges que está tudo igual? Porque é que me olhas do mesmo modo? Porque é que agora, mais do que nunca, és amorosamente simpático ?

Ainda não reparaste como me refúgio nos livros, como fujo da sala para a cama todas as noites ou como fico furiosa cada vez que irrompes pelo escritório sem bater na porta?

Ainda não olhaste no meu novo pudor, que me faz ao fim de tantos anos de nudez, usar roupão depois do duche e dormir de pijama?

Ainda não viste que mudei a minha imagem, que emagreci, que cortei o cabelo? (lembras-te que há 15 anos te prometi que seria sempre comprido?).

Ainda não atentaste na minha ausência permanente, na aliança que há meses não está no meu dedo, nos meus compromissos profissionais que terminam cada vez mais tarde, nos treinos de autonomia que te tenho imposto, nas minhas fugas de domingo, quando já não aguento nem mais um minuto dividir o espaço contigo?

Ainda não reparaste que nunca mais reclamei da tua apatia sexual, que nunca mais te seduzi, que nunca mais sequer te toquei?
Ainda não me ouviste dizer que estou diferente, que quero outras coisas da minha vida, que a nossa relação já não é válida?
Preciso de gritar?

E hoje, impulsivamente ao passares por mim na casa de banho deste-me um beijo na nuca... e eu tive vontade de gritar, porque senti a minha intimidade violada, quis atirar-te tudo à cara, dizer-te o quanto eras cego... mas não fui capaz... e fiquei calada...
Patrícia