Alice esperou 38 anos para matar o marido
por Sílvia Caneco, Publicado em 10 de Março de 2011, Jornal i
Aos 71 anos ficou viúva pelas próprias mãos: agarrou num tubo de ferro e matou José. Foi condenada a 14 anos, cumpriu seis. A história da luta entre a mulher e o corpo que o marido marcou com nódoas negras
...Alice tem 32 anos, vive em casa dos pais e quer mais é esquecer o primeiro marido e não voltar a pensar em casamento. Casou aos 18, a acreditar que seria para a vida. Foi um inferno: ele bebia, não trabalhava, jogava à batota pela noite dentro, perdia e ficava sem dinheiro. Nunca lhe bateu mas vendeu--lhe anéis, fios, pulseiras, propriedades. Um dia, aos 25, Alice desistiu: ele foi para casa dos pais dele, ela para casa dos pais dela, cheia de vergonha de regressar, adulta e falhada.
Assim se passaram sete anos, com Alice debaixo das saias dos pais a meter na cabeça que nascera sem sorte e que ali viveria para sempre, sem homem e sem chatices. Mas uns tios foram insistindo, dizendo aqui e ali como o José era um homem de boas famílias e agora também estava solteiro, depois de um primeiro casamento que falhara mas "não por culpa dele". Alice nem se lembra de aceitar. Não sorriram, não se amaram. Num dia nem era uma hipótese, no outro o casamento estava consumado. O amor era aquilo ou coisa nenhuma.
...Depois do casamento, bastaram alguns dias para adivinhar o calvário: José era, de facto, de boas famílias - seria difícil encontrar melhores sogros e cunhados -, mas não era um homem bom. "Era traçado, não de beber, que só bebia um copito de vinho à refeição. Era ruim, ruim das entranhas", conta Alice, com o mindinho torcido sobre os lábios, a retroceder dos 79 para os 32 anos.
Alice e José viviam num anexo da casa da família dele. As tareias e as ofensas eram tão violentas que nunca foram segredo para quem vivia mesmo ali ao lado. O pai tentava impedi-lo, dizendo-lhe que as mulheres são para ser respeitadas e que Alice "era do melhor" que ele podia encontrar. A mãe, descobriu Alice anos mais tarde quando encontrou José a atirá-la para fora de uma bacia, era outra vítima. "Pega-lhe se quiseres, que eu não quero saber dela para nada", resmungava José, que rejeitava a mãe inválida com a mesma indiferença com que, por nada, rejeitava a mulher. Quando o pai de José morreu, as tareias tornaram-se quase diárias. Num dia José ameaçava atirar a cara de Alice para dentro de uma cisterna de água, noutro atirava-lhe "uma forquilha de enjeitada", noutro dava-lhe murros na cabeça porque ela gastara 3 euros na compra de um quilo de sardinhas ou tinha dado dinheiro à neta para ir comprar cebolas. Batia-lhe com as mãos, com paus, com as canadianas, com o que tivesse à mão. "Quando não batia passava a vida a judiar--me", recorda Alice, segurando as palavras com os lábios, fazendo força com os incisivos. José desprezava os pequenos-almoços, atirava louça e comida para fora da mesa ao almoço e ao jantar e enquanto fazia as suas mãos caírem sobre Alice chamava-lhe galdéria, puta, vadia, ordinária.
Ela andava de cara negra, mas escondia, esfregava as feridas com álcool. Um dia, depois de ser operada a uma mão, e antes de se deslocar ao hospital para mudar o penso, nem com álcool resultou: a solução foi encobrir as nódoas negras com pó de arroz. Transformou--se na técnica de camuflagem preferida: Alice tratava da própria caracterização. Acordava religiosamente às quatro da manhã, todos os dias, e ia para o palheiro. Ele ficava na cama, mas às sete não admitia que ela não tivesse limpado o estrume, ordenhado 32 vacas e não viesse já com um pote de leite em cada mão, pronta para tratar do pequeno-almoço e seguir para as oliveiras. Ela não parava e ele trabalhava tão pouco que, naquela aldeia de Matas, 40 habitantes e a seis quilómetros de Santarém, era conhecido como "o calão que moía a mulher com pancada".
O crime São seis da manhã do dia 2 de Agosto de 2002, sexta-feira, e, enquanto José sangra no chão da cozinha, Alice grita pelas vizinhas. Conta que apareceram dois homens, de "cara tapada com capacetes" e vestidos com "uma farda castanha", e que bateram em José até à morte para se vingarem de aventuras amorosas que ele levava em Santarém. Durante o fim-de-semana, em casa do filho, ao lado da nora e da neta, Alice anda nervosa mas mantém a versão dos factos que contou às vizinhas e à polícia. "Não conseguia contar, morria de vergonha", lembra Alice, com as unhas unidas em cacho, na cozinha de móveis melancólicos da casa do filho, onde agora vive, numa localidade vizinha de Matas.
No dia 6 de Agosto, os inspectores batem à porta de casa e pedem a Alice que conte a verdade. Não precisaram de dizer que tinham encontrado as suas roupas ensanguentadas, com sangue de José. Alice desatou a chorar, deitou a cabeça no ombro do inspector e durante minutos só conseguiu repetir: "Não aguentei mais." Era a sua confissão. Alice nunca soube distinguir se era homicida ou mártir.
António Teixeira, ex-inspector da PJ, nunca esqueceu a história de Alice. Usa--a até hoje como exemplo de que "homicidas somos todos nós, num momento de desvario e de desespero", e repete a história com a pena de quem teve de prender alguém que matou mas o fez porque foi vítima. "Porque depois de anos a ser agredida houve um dia que não aguentou mais." O ex-inspector tentou ajudar Alice. Almoçaram juntos e aconselhou-a a contar toda a história das agressões perante o juiz, naquela tarde, no Tribunal de Santarém. Alice fez tudo ao contrário. Estava tão nervosa que só continuava a repetir: "Perdoe-me, não queria matá-lo, mas não aguentei mais." Não contou das tareias e das ofensas ao longo de 38 anos, não contou que José ameaçava matá-la se ela fizesse queixa, não contou sequer que nesse dia José agarrou numa faca para lhe cortar o pescoço. Nesse mesmo dia, António Teixeira e outros inspectores levaram Alice para o Estabelecimento Prisional de Tires. Era, na altura, uma das mulheres mais velhas presas no país. Dias depois, a 19 de Agosto, a tia Alice, como ficou conhecida na cadeia, recebe um bolo na prisão, mas não conta a ninguém que faz 72 anos.
A mentira contada após o homicídio e a omissão das agressões no primeiro depoimento no tribunal foram fatais. Alice foi condenada a 14 anos de prisão. Recorreu e conseguiu dez. Pelo meio recebeu um indulto presidencial de um ano do Presidente Jorge Sampaio. Seis anos de prisão depois, no dia 6 de Agosto de 2008, entrou no carro do filho e não olhou mais para Tires.
...Alice tem 71 anos e um imenso cansaço. Na noite de 1 para 2 de Agosto de 2002 nem se lembra de dormir. Não por culpa da noite abafada naquela localidade de Santarém onde o Verão quando chega queima árvores, terra, rugas e o próprio ar. Anda às voltas na cama tão cansada como se ainda andasse de cócoras, no chão, a apanhar os bocados de jantar rejeitados pelo marido. Como sempre, durante 38 anos, é a primeira a levantar-se, ainda de madrugada, e o marido fica na cama. A ronha, nessa manhã, nem durou muito. Não tardou que José, três anos mais novo, se dirigisse à casa de banho e gritasse da sanita: "Ó Maria, anda cá limpar-me o rabo."
Ela, como em tantos outros dias, foi, enrolou o papel higiénico à volta da mão e limpou-lhe o rabo. Preparava-se para fazer o pequeno-almoço quando José se antecipou e disse que tratava de si. "Ainda bem. Assim vou mais depressa para a fazenda cortar os arrebentões das oliveiras", respondeu Alice, já pronta para sair. José não consentiu aquela resposta. Agarrou numa faca da cozinha e Alice encolheu-se. Depois avançou para ela ameaçando que lhe iria cortar o pescoço. Alice soube que era ele ou ela. Procura um pau, mas não encontra. Sai do anexo e encontra um tubo - 81,3 centímetros de comprimento, 2,2 centímetros de diâmetro. E o diabo, como ela ainda hoje lhe chama, entra com ela na cozinha. O diabo eram aquelas nódoas negras na pele, o corpo calejado das tareias e das ameaças, os ecos de "limpa-me o rabo", "vou matar-te", "sua puta, galdéria, ordinária". Alice puxa a mão para trás das costas e atinge José na cabeça, deitando-o ao chão. Volta a bater-lhe com o tubo na cabeça e no corpo. Uma, duas, não se lembra quantas vezes. José sangra e morre com uma fractura no crânio. Foi o momento em que a mulher perdeu o combate com uma barra de ferro.
Alice vive num anexo da casa da família do filho e não pára de repetir quanto adora filho, neta, mas desfaz-se de amores sobretudo pela nora, a mais dura da família. Anda apoiada num pau e faz força numa perna para poder mexer a outra. Os cães seguem-na do laranjal para casa, da casa para o laranjal. A aldeia que a entendeu no momento do crime agora esqueceu-a. Alice, 79 anos, nunca mais recebeu visitas dos antigos vizinhos de Matas desde que saiu da prisão. O filho, que sabe que o pai morreu às mãos da mãe, mas também o conhecia melhor que ninguém, nunca a julgou. Clara, filha do primeiro casamento de José, abriu um processo para pedir uma indemnização a Alice pelos danos causados com a morte do pai. Clara, até aos 11 anos, ia duas vezes por semana a casa do pai; daí até aos 18 ia só aos domingos para pedir a mesada; a partir daí só o viu três ou quatro vezes antes de ele morrer.
No quarto Alice tem duas imagens de Nossa Senhora de Fátima e um postal de Natal que trouxe de Tires. A prisão, afinal, "não é assim um sítio tão fechado como pensava", diz Alice, 79 anos, nenhum traço de infância no rosto. "E até tinha colegas em situações semelhantes", como a mulher "que cortou o marido às postas". A antiga casa de Alice já não existe e na nova não há fotografias de José. "Ele quer lá saber de fotografias. Ele é ruim, de ruindade mesmo. Deus nos livre de nos calhar um desses", remata. Fala no presente como se o passado ainda existisse nele. Alice é viúva mas José ainda mora naquela casa.