sexta-feira

Retrato de Mulher Triste

Vestiu-se para um baile que não há.

Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.


O homem que não existiu.


Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.



Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)'

domingo

A fotografia

Olho, pela primeira vez, para uma fotografia de meus pais, consciente que nunca o foram. Surpreendente esta sensação de ver um estranho com um olhar cúmplice ao lado de minha mãe, como se tivessem sido um casal de verdade. Reflicto, que certamente o tiveram de ser, nem que fora pelo breve instante em que me conceberam. Não que sinta a repugnância imberbe dos filhos que não conseguem imaginar os pais em estertores sensuais, mas a estranheza de imaginar afectos entre minha mãe e um estranho, do qual tenho um nome no meu nome, e não com o homem que sempre amei como pai e é o único avô que o meu filho conhece.
O passado de uma relação é sempre profundamente obscuro, mais ainda quando nunca foi presente para quem dela nasceu. Os laços que podem ter existido não me sustêm, as gargalhadas que podem ter acontecido não ecoam em mim, os abraços que eventualmente foram trocados nunca me envolveram.

Olho mais atentamente a foto antiga e vejo dois jovens, em noite de primavera, numa esplanada ou num antigo cinema ao ar livre. A rapariga é de facto parecida com a minha mãe, poderia ter sido ela nos anos 60. E o rapaz sentado ao lado dela, e que a olha, possui alguns traços que poderiam ser meus.

Afinal são apenas dois jovens…a viver uma história, a sua história … que me é completamente estranha.

Poderiam ter sido os meus pais, mas não são!

Alexandra

quarta-feira

O Medo

Baixo o livro que leio, pouso-o no colo, e olho para ti. Procuro os teus olhos que fogem incessantemente para lugar nenhum. Vejo como carregas compulsivamente nos botões do comando da TV [como quem corre a maratona em busca da medalha olímpica], suspiras e passas as mão pelo cabelo [como fazes sempre que tens um problema]. Estás perdido… fazes um enorme esforço de contenção, tão grande que os teus dedos se juntam como se segurassem um cigarro na busca do consolo que ele te dava.

Divido-me entre a fúria e a ternura e contínuo, em silêncio, a olhar-te.

Finalmente olhas para mim. Certamente nos meus olhos vês a enorme interrogação que me inunda: “eu só te perguntei se não quererias vir viver cá para casa?”.

Abraças-me e murmuras baixinho: “amo-te, mas tenho tanto medo”.

E perco-me [como sempre] em ti.

E tu, ficas.



Catarina